domingo, 26 de novembro de 2023


 estou onde não estou.


  talvez me tenha perdido 

na procura  do entardecer 

         dos gatos


        não encontro  a aurora

prometida, débil como as asas,


     inexistente

          como as quimeras.

(deveria estar algures 

                 no meio delas).



           


                          talvez esteja. 


Susana Duarte

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

 a asa pesa, no vôo 

disperso 

da ave esmaecida,


sempre que a fractura 

da plúmula é superior 

à elevação da mente.


a disforia dos olhos

desmente a flor branca 

da expectativa:


delirante o poema,

obtusa a pele


[fracturada a alma]


Susana Duarte




sábado, 7 de outubro de 2023

 somos as asas quebradas

de um qualquer horizonte                longínquo


(ossos fracturados

         de uma razão desconhecida);


atentos aos sons passageiros          das aves,

             (e circunspectos como elas),

soletramos 

              esperas, 

                      devaneios

                               e acções

tão risíveis quanto os dias que nos atropelam.


somos, todavia, expectativa

                             pudor

                             alegria indisfarçada

quando o sorriso nos confronta e, 

           na simplicidade das horas, ilumina.


Susana Duarte

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

 Em 2013, escrevi isto. Foi o Facebook que mo trouxe. Nem me lembro de tal coisa...


I

As terras

“DA MINHA ALDEIA vejo quanto da terra se pode ver no Universo....

Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,

Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.”

Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos". 


Nasci no Inverno, em noite fria, o que poderia fazer supor que a noite me é companheira de viagens e passeios. Ao invés, é-me amiga na solidão da escrita, que traduz em palavras as sensações, emoções, amarguras e sorrisos que cada momento do dia nos proporciona.


As primeiras lembranças cruzam-se, repetem-se, descobrem o seu espaço para se tornarem conscientes e trazem à superfície da memória as imagens da aldeia dos avós, da casa da madrinha, dos odores da cozinha em dias de festa na aldeia, do repicar dos sinos, das primeiras letras lidas e escritas, do sabor da descoberta, da massa crua de bolo da Páscoa e dos sonos descansados, acalentados pela sabedoria da presença dos pais e irmão.


Vêm à memória, sobretudo, rostos. Rostos de gente verdadeira e trabalhadora, que ama a terra como quem ama a si próprio. É nesses rostos que penso quando vejo exposições de fotografia. Quando vejo os vindimadores. Quando me sento sob a sombra de uma árvore de fruto.


Vêm à memória, de igual forma, odores. Muitos deles, residirão apenas na memória de momentos que não se esvairão das veias onde habitam (como as Madalenas de Proust).


Foi com a minha mãe, minha primeira professora – e, de facto, então, professora do ensino primário-, que as primeiras letras tomaram forma no livro. E foi na magia da descoberta da palavra que me ocupei a perscrutar caminhos nos livros que, generosamente, me davam a ler. Foi nesses primeiros anos que me enamorei de Júlio Dinis, cuja poesia sabia de cor.


Foi com a Professora Alexandrina, depois.

E com o meu pai e a Telescola, que aprender continuou a ser um prazer. 


Foi fora de Portugal, depois. Mas já lá vamos.


Foram os anos da brincadeira livre nas ruas da aldeia. Os meus avós deram-me a conhecer a terra, o prazer dos pés que se sujam na terra molhada, o chamamento da eira onde se malhava o feijão, o prazer de pisar as uvas depois da vindima. As imagens da terra são as imagens da vida, e é nelas que se enforma a base de tudo o que se seguiu.


Dos anos de infância, lembro as amizades, a terra, as subidas às árvores, as procissões, as mulheres de lenço negro e de cântaro de água na cabeça, e a aparente infinitude do tempo.


Crescer, afinal, foi tão fácil….


Foi com a minha mãe que aprendi o que é uma Mãe e foi com o meu pai que aprendi o que é um Pai.


Foi no cimo de uma árvore ameixoeira que instalei o meu “cantinho da leitura”.


Foi na cozinha da Aurélia que roubei pedaços de massa crua de bolo.


Foi na casa da Celeste que aprendi a solidariedade. Foi na escola que aprendi a estar com os outros e a partilhar.


Foi nas idas a pé para a Catequese que aprendi o companheirismo.


Foi olhando para as nuvens que aprendi a sonhar. 


Foi com o meu irmão que descobri o que é a Saudade-porque cada momento em que brincava com ele era uma imagem lançada para a eternidade.


Foi com os meus avós que inventei momentos de fruição e descoberta, e com eles, conheci o privilégio de ter avós. Os meus queridos, doces, magníficos avós.


Foi na casa da minha madrinha que aprendi a doçura e aprendi sozinha a ler inglês. Foi com a Graça que aprendi a jogar às cartas. 


Foi com a Helena que, pela primeira vez, me senti parte de alguém que não fossem pais, irmão, avós, madrinha e primos. 


Crescer, afinal, foi mesmo feliz. Como quem revolve a terra e descobre nela a génese do seu ser. 


I I

Movimentos

“Os meus olhos são uns olhos,

e é com esses olhos uns

que eu vejo no mundo escolhos, 

onde outros, com outros olhos, 

nao vêem escolhos nenhuns. 


Quem diz escolhos, diz flores!

De tudo o mesmo se diz!

Onde uns vêem luto e dores,

uns outros descobrem cores

do mais formoso matiz.


Pelas ruas e estradas 

onde passa tanta gente,

uns vêem pedras pisadas,

mas outros gnomos e fadas

num halo resplandecente!!


Inutil seguir vizinhos,

querer ser depois ou ser antes.

Cada um é seus caminhos!

Onde Sancho vê moinhos,

D.Quixote vê gigantes.


Vê moinhos? São moinhos!

Vê gigantes? São gigantes!”

Impressão Digital

António Gedeão, in "Movimento Perpétuo", 1956


Descubro que as pessoas adultas podem não querer continuar a viver a vida que vivem e, nas nuvens dos invernos que se movem sobre todos nós, as primeiras separações ditam novos rumos.


As ameixas e as laranjas da aldeia continuam a ser as melhores. Já sei Inglês. Já sei Francês. Sei recortar lindas toalhas de papel. A escola nova é grande, mas a ameixoeira ainda me acolhe nos seus braços, quando quero olhar o mundo sem que ninguém dê por mim. Começo a perceber que sou assim…


Crescer torna-se diferente. E novas vivências e imagens se interpõem. A partida para Itália é a abertura aos braços genesíacos da descoberta de um mundo novo: o azul do Adriático, as misteriosas luzes noturnas do mar de verão, a doçura da língua e a maravilhosa sensação de completude. A saudade das aldeias-raíz não impede a abertura de um novo sorriso ao mundo.


Aprendo que o Verão é o lugar mais confortável do mundo, desde que nos sintamos em casa. Aprendo as saudades de cá, quando regresso às margens do Adriático, e as saudades de lá, quando a família nos acena na chegada. Aprendo que chamamos casa a todos os lugares onde há afeto. 


Desses tempos, fica a noção de expansão do ser. Como foi possível crescer, estar, saber, criar, amar, querer, sonhar, numa nova língua e num novo espaço-tempo. E como é belo poder ver-se em casa, em olhos estrangeiros.


Desses tempos, fica a raiz de tanto do que veio depois.


Estar no meio das pessoas e fazer novos amigos é, afinal, muito bom. Aprender a tocar flauta e piano, afinal, é como aprender a fazer massa à mão, a saltar à vara e em comprimento, a jogar voleibol e saber que, afinal, sou capaz. Fazer parte de um grupo, afinal, é um desejo normal. O fechamento latente dá lugar à insaciável vontade de estar com os outros e de, com eles, saborear as cerejas dos gelados de cada dia e os saltos noturnos, às escondidas, nos trampolins dos espaços de jogo. 


Os anos italianos ficaram gravados de forma impressiva e moldaram muito do que sou… ao ponto de se manterem presentes e me darem luz aos dias. Ainda hoje…Veneza é muito mais do que as máscaras de Carnaval e a Ponte de Rialto. Florença é muito mais do que a Ponte Vecchio. Milão é muito mais do que o Duomo. A Planície da Emilia- Romana é muito mais do que ela mesma. Cesenatico é muito mais do que o seu porto, os seus barcos, as suas luzes. Ainda hoje, a Itália tem os sabores, as cores, os odores da génese do ser. E os rostos de quem vive no meu coração de forma indelével. E os caminhos ainda por trilhar…


E ficaram para sempre, espraiadas no Adriático, as lágrimas do regresso, choradas sobre os ombros queridos de um amigo, à beira-mar, numa noite morna de Agosto. Afinal, a vida faz-se com chegadas e partidas. Por vezes, somos nós quem chega…e por vezes, somos nós quem parte.


III

Rumos

“Só nos pertence o gesto que fizemos

não o fazê-lo como, iludida,

a divindade que em nós já trouxemos

supõe errada (e não) por convencida.


Porque o traçado nosso em breve cessa,

para que outro o recomece e não progrida;

que um gesto em ser gesto real se meça,

não está em nós fazê-lo, mas na Vida.


Assim o nada a sagra quando finda

porque o que é, só é o não ainda.”

Só nos Pertence o Gesto que Fizemos, Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'


“-Entrei em Psicologia!!!”


(em Psicologia? Mas não era Direito?)


Não, não era Direito. Não eram as Leis. Era, antes, a necessidade de compreender, de renomear as coisas, de saber com que cores se tecem as emoções e em que teares se urde a construção do Ser e do Outro.


Ainda não sabia, então, da riqueza da paleta de cores que viria a ser posta perante os meus olhos, nos anos subsequentes, na faculdade e no trabalho. Tive excelentes mestres.


Conheci pessoas que tiveram a gentileza de me mostrar os seus próprios rumos, as suas origens e os caminhos até ali. Os olhos escuros de um amigo do sul deram-me a conhecer novas letras, novas formas de perceber o mundo e os outros. Ficou para sempre.


E ficou para sempre a Praxe, a tradição, a Canção Coimbrã. Lugares e momentos onde habitam fadas e duendes e todas as criaturas da imaginação, porque só elas criam os misteriosos encantos dos anos de juventude.


Descubro. Descubro-me. Reivento-me nos olhares e nos sorrisos. Nas lágrimas de saudade e nas noites cúmplices.


A Cidade onde o amor de Pedro e Inês deixou impressa a lenda do sangue, na Fonte que é das lágrimas, é capaz de encantar com as suas ruas-pedras-voz de sereia.


E foi nela que me permitiram o privilégio de trabalhar com pessoas especiais. Sem aspas. Ao designá-las especiais, com aspas, está-se já a separar conceitos quando, na verdade, somos todos especiais criaturas, cada um na sua maneira única. Cada um, de acordo com o que sabe, com o que pode, com o que tem. O Outro é sempre parte integrante de nós, se lhe dermos pleno acesso aos recantos do nosso afeto; se partilharmos as ondas das nossas próprias maresias e se, de um modo generoso, soubermos partilhar o que aprendemos para cumprir a nossa parte na missão de tornar o mundo um lugar um pouco menos estranho. Da mesma forma que cada estrela, no seio de uma constelação, é sempre mais bela e admirada por isso mesmo. Só, seria incógnita. Não passaria de uma estrela sem nome.


IV

O Poema

“O poema não é o canto

que do grilo para a rosa cresce.

O poema é o grilo

é a rosa

e é aquilo que cresce.


É o pensamento que exclui

uma determinação

na fonte donde ele flui

e naquilo que descreve.

O poema é o que no homem

para lá do homem se atreve.


Os acontecimentos são pedras

e a poesia transcendê-las

na já longínqua noção

de descrevê-las.


E essa própria noção é só

uma saudade que se desvanece

na poesia. Pura intenção

de cantar o que não conhece.”

Natália Correia, in "Poemas (1955)"


Cavalo alado na noite de fogo. É na noite que se escreve o Poema. É de dia que se escreve o Poema. É a Vida, ela mesma, que determina o curso que a caneta traça no papel. Acredito. Oxalá….


A vida faz-se de avanços, de recuos, de recusas e aceitações. Iludimos e desiludimos, da mesma forma que outros nos iludem e desiludem. Mas da terra, no meio das pedras, nasce sempre o que da semente germina e se estende em braços cruzados ao céu. No céu, as nuvens ensinam-nos que somos pequenos e indefesos. A verdadeira sabedoria é a da terra. A da voz que nos leva à raiz do que somos. E o que somos desenvolve-se com os Outros. O olhar-luz de uma filha que, diariamente, inscreve o seu caminho em cada veia do meu corpo, é a aurora desvelada sobre as flores que ainda vão ser. Aprender a ser mãe. Reaprender o ser filha. Reconhecer o ser….apenas. Construir com os afetos.


Da vida … os rostos. São eles, na verdade, que determinam as palavras. Por detrás de cada verbo, um rosto. Por detrás de cada impressão, um rosto. Por detrás de todos os rostos, a verdade pressentida.


Procuro olhar as nuvens e reencontrar, nas aldeias e nas cidades, nos caminhos percorridos e nos outros, que falta percorrer, a forma que permita tornar verdadeiro o pensamento de Vergílio Ferreira: “Uma verdade só o é quando sentida - não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê”.


Quem sou, afinal? 


Herdeira de corações honrados e sonoramente belos que moldaram a imperfeita pessoa que sou. Crescer, até aqui, foi belo.


E belo é, afinal, o inesperado… uma sucessão de inesperados deu-me as coisas mais belas e importantes da vida."


Susana Duarte


Julho de 2013


quarta-feira, 4 de outubro de 2023

 adormeço as palavras 

sobre a lua indigente,


sôfrega de céus e de lavras.


durmo eu, sobre as noites de outrora,

inventando palavras de noite

e de espanto 


-onde a lua cai sobre mim

e me invento barro, distância

e canto.


sou um esquisso,

noite inacabada, movimento de águas

revoltas sob uma lua ao mesmo tempo tudo,

ao mesmo tempo nada,


tão indigente quanto os gatos 

na estrada,


ou as mulheres desertas.


Susana Duarte

2022





sexta-feira, 7 de julho de 2023

 passamos pela terra como borboletas finitas,

cavalos de fogo em terras inclementes,

flores do deserto em chão quente, 

de sáfaras e dores.


deixamos as cores e os olhares onde mágoas

se plantam nos pequenos cactos, 

onde vivemos,


procurando a luz que nos cobre

e nem sempre colhemos.


Susana Duarte


domingo, 5 de fevereiro de 2023

 descubro o silêncio             onde  as aves 

                            rompem       madrugadas

debatendo-se,  sonoras,          com a noite


(e as almas apaziguadas com a redenção).


mergulho no teu rosto            descoberto,

vôo seguro            sobrevoando as vagas

onde os meus silêncios                 atrozes

condenam o olhar         o ver         o sentir

e os espaços      entre          mim   e mim,

e  entre a tua pele             e a minha pele.


descubro o silêncio     nas noites vívidas

     da tua presença,                      definida

            como  as plúmulas,    sonora

como a maré                        que me colhe,


         transformando-me em algaço,

                                gota,


          ave sem asas, maré que me és.


Susana Duarte





terça-feira, 31 de janeiro de 2023

 digo-te adeus

antes que a estrada 

           desuna os braços


e me obscureça 

            os latidos,           os gritos      e os vôos.


digo o que sei:

não existe mais do que a voz 

        com que calo           o que pressinto.


a estrada lenta das árvores

onde o sabor do absinto            me desnudou,

será a mesma                           que te abraçará


no regresso ao norte.       


as mãos que levaste       contigo,         aladas

e inseguras,            etéreas,

                 sobrevoadas pelas linhas do sangue,


dir-te-ão da impossibilidade 

                     e da ausência.        digo-te adeus,


      onde os cruzamentos  das palavras 

                  não permitem a voz 

                  ou o balanço suave


         das águas inertes sobre os corpos.


Susana Duarte


domingo, 18 de dezembro de 2022

 um dia, esquecer-te-ás do meu nome:

talvez te lembres que nos conhecemos

no lado solar de uma estação de comboios,

por entre passos soletrados e a imensidão

das solidões que passavam por nós.


chamarás o nome antigo das horas passadas

no silêncio cúmplice dos corpos, e serás triste

como os olhos que deixaste. um dia,


esquecerás que fomos um, tropeçando

nos dedos como quem ri, nos corpos 

como quem tem fome e sede e desespero

e a impressão digital das lutas antigas.

ainda te lembrarás das palavras, mas nada

terá o sal, o sangue e o fogo dos dias 

tornados perenes num seio frio.


partiste, e como quem parte, deixaste 

os lábios de outrora, interditos como amoras;

serás sombra, e pó, e o piar de aves 

sem sonhos, ou o vôo de plúmulas perdidas;

serás a sombra do sonho e o uivo negro 

dos olhos que fechaste na tarde setembrina,


naquelas linhas escritas a ferro,

onde as lágrimas não bastaram.


Susana Duarte


terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 construída pelas dissonâncias,

sento-me  só e navego ondas 

de nada.


sou a antítese,

a matéria intrínseca do silêncio,


e as noites do nada onde me sento 


e sou.


Susana Duarte




terça-feira, 6 de dezembro de 2022

 o silêncio determina as vozes 

com que as memórias se perpetuam.


as palavras aniquilam a possibilidade

de regresso ao tempo das uvas.


é na forma como te colho o olhar, 

que renasço dos vôos passados:


são as quimeras que içam as vozes

ao lugar das auroras suavizadas 

pela presença das mãos, tão eternas

quanto os olhos, tão estranhas como eles-


tão díspares como as noites vívidas

e as outras, pó e nada e resistência e solidão.


Susana Duarte


terça-feira, 29 de novembro de 2022

 metade de mim é silêncio.


onde o silêncio habita as margens

das veias, habita igualmente o mar


tempestuoso 

dos meus pensamentos.


metade de mim é silêncio,

e mais não sei. sei apenas 


da inexistência


dos nomes que não visito,

dos rostos de que apenas

guardo memória,


da solidão que me mora no sangue,


e da metade de mim que é silêncio.


outra metade, são as quimeras,

as viagens que demoram,


e a demora da tua pele. 


metade 

de mim seriam as águas perdidas

e os voos picados 


por sobre as ondas.


metade de mim é silêncio;

metade de mim é o que não sei.


Susana Duarte

2020


domingo, 27 de novembro de 2022




 por vezes, apetece chorar 


a chuva que cai,

a noite que desce,

a morte dos outros,

a estrela coberta,

o dia que finda,

o corpo cansado,



o que não se sabe

e o que não se vê:



soltar o grito aprisionado

no limbo,

no oráculo,

no terço,

na oração,

na expectativa,

na rotina,



onde quer que seja,

onde quer que esteja,

onde quer que oiças,

ou não oiças,

ou não vejas



o que nem sequer sabes

se sentes,

ou ouves,

e se ages



ou não. talvez sim.

talvez saibas. talvez ignores.

talvez seja a chuva.

talvez não. 



e, afinal, o que é que importa?



Susana Duarte 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

 há um rosto escondido atrás

do meu rosto,

uma flecha inerte


perdida no espaço.


a voz,

a alucinação 

ou a máscara etérea do sorriso 


esgotado.


Susana Duarte


 o amarelecimento das folhas

é proporcional ao envelhecimento

dos insuspeitos olhos de outrora,

luzidios como as águas.


imersos, agora, nas folhas apodrecidas 

dos lagos dos dias,

os olhos amarelecem ao ritmo dos outonos

sacrificiais e dos tristes sorrisos 

convocados pelas mágoas.


o amarelecimento da vida

é proporcional aos anos desfeitos 

pela realidade, e às asas esbatidas 

        dos vôos 


            outrora imensos.


Susana Duarte

quinta-feira, 3 de novembro de 2022


 a asa pesa, no vôo 

disperso 

da ave esmaecida,


sempre que a fractura 

da plúmula é superior 

à elevação da mente.


a disforia dos olhos

desmente a flor branca 

da expectativa:


delirante o poema,

obtusa a pele


[fracturada a alma]


Susana Duarte

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

 esgotei os poemas

onde as veias dilatam

a indefinição das paixões.


viva, estranha, escrita 

e interdita, corre a palavra

nos pulmões, alojando-se

nos interstícios 


de corpos estranhos,

cadavre exquis de si mesmos.


os poemas salvam 

a pele, onde esta se desfaz

e refaz no corpo

dos dias.


Susana Duarte

2020

sábado, 22 de outubro de 2022

 abro ao porta ao silêncio

como se as palavras suspensas

fossem âncora, navegação à vista

ou salvação


sabes que não há paredes 

onde impera a solidão dos pássaros


nem cães a ladrar nas ruas


olho a chuva que cai e desnudo 

o silencioso piar de pensamentos ocultos


só a chuva, e o silêncio,

sabem das estradas que percorri, e da vontade

submersa de voar


Susana Duarte

Hoje


quinta-feira, 20 de outubro de 2022

 quero de ti um poema de osso

e de asas, de rémiges 

escritas nos dedos


e de navegação da pele

sobre as mágoas antigas.


do voo, nada digas:


sobrevoa as costas 

das memórias, e transforma 

o poema na escrita da carne.


Susana Duarte


segunda-feira, 17 de outubro de 2022

 faço-me voz da tua voz


como se abraçasse,  inerte,

a tua presença


dela ficou apenas o silêncio

nublado com que descreveste

círculos


num pescoço nú.


Susana Duarte

2020

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

 aconchego o silêncio onde renovo

as palavras adormecidas. encontro-o

nas ausências, e sou sombra das intenções.


aconchego o teu silêncio onde permaneces

quimera, estátua de sal ou ave derramada.

onde a morte desassossega os vivos,

sou quem não quis ser, e de ti, não sei.


encontro o silêncio cartografado na pele,

onde nada escreves,e onde vivem

as linhas vorazes de um vôo anterior à vida.


escrevo vozes. no lugar da vida,

eis a ausência das palavras.


Susana Duarte

terça-feira, 4 de outubro de 2022

 adormeço as palavras 

sobre a lua indigente,


sôfrega de céus e de lavras.


durmo eu, sobre as noites de outrora,

inventando palavras de noite

e de espanto 


-onde a lua cai sobre mim

e me invento barro, distância

e canto.


sou um esquisso,

noite inacabada, movimento de águas

revoltas sob uma lua ao mesmo tempo tudo,

ao mesmo tempo nada,


tão indigente quanto os gatos 

na estrada,


ou as mulheres desertas.


Susana Duarte

domingo, 2 de outubro de 2022

 há um destino em cada palavra:


evidenciado pelas manhãs rubras

das vozes antigas,


encerra uma novena,

uma prece dirigida aos cadavres-exquis

que povoam a mente lúcida.


houvesse apenas desconhecimento,

e o riso sobressaltaria a noite.


há um destino em cada palavra,

e nenhuma me conduz a ti.


Susana Duarte


sábado, 1 de outubro de 2022

 trago o silêncio nas veias,

como uma veste antiga


sobre o lado do avesso 

dos ossos.


visto-o,  tão sagrado 

como outra veste qualquer,

como outro corpo qualquer.


espelho os lugares

onde o sangue se demora


e pergunto quem sou.


Susana Duarte

sábado, 24 de setembro de 2022

 Melancolia 

(ouvindo “Possibility” – Lykke Li)


a melancolia das nuvens           transforma (se),                   mulher-peito-ventre obscuro                 de rosas,

renascendo ela ( a mulher)      das implausíveis


expectativas:          as que residem nas estrelas,

e mais não são             do que sonhos antigos              das feiticeiras.        a melancolia das mulheres

é a transformação do ventre do mundo,                   a morfologia das dores        e dos momentos,

           parto irresoluto dos amores das aves nos beirais de casas desabitadas.  


                         as rochas

são as estrelas transformadas na dor da partida.   e da sabedoria da razão: o adeus aos sonhos.  


Susana Duarte